Na sala de condomínio de uma casa no Restelo, um grupo de mães vai chegando, com as respectivas «crias», a conta-gotas. A reunião tinha hora (indicativa) de chegada para as três da tarde de uma quinta-feira, mas o normal é «ir-se chegando» - que isto de ser mãe é um «full-time job», quanto mais quando acumula com outras tarefas... Os sofás estão dispostos em quadrado, virados uns para os outros, num convite ao diálogo. Cristina Leite Pincho, 33 anos, mãe de cinco a tempo inteiro, acomoda-se num deles. É a líder da Liga La Leche em Portugal, uma associação que apoia uma boa relação entre mãe e filho através do aleitamento materno. É ela que vai moderar a reunião.
Vem com Daniel, o seu quinto filho - e o mais novo -, um «diabinho» com cara de anjo e caracóis louros. Cristina amamentou os seus cinco filhos, de forma cada vez mais prolongada: a primeira mamou até aos oito meses; o segundo, até aos 14; «o último, o Daniel, tem dois anos e ainda mama». Assume sem complexos que dá de mamar ao filho mais novo «não por motivos alimentares, mas por motivos afectivos». Este é o aspecto que considera que, tanto médicos, como mães, mais vezes esquecem. «Amamentar é muito mais do que alimentar uma criança», diz ela, para quem a expressão inglesa «mothering» é a que melhor traduz o acto de dar de mamar.
A toda a gente que olha com estranheza para crianças mais velhas que mamam - algumas pessoas até acusam as mães de estar a «instigar-lhes maus hábitos» - Cristina recomenda a leitura da resolução da Organização Mundial de Saúde sobre o assunto: a OMS recomenda que se dê de mamar até aos dois anos - e até aos seis meses em exclusividade. «Fá-lo, também, com base em razões médicas», explica. «Até essa idade, o sistema nervoso central está a desenvolver-se, e o leite materno possui ácidos gordos que propiciam essa formação. Mas os bebés têm uma enzima para digerir o leite da mãe até aos quatro anos», afiança. Talvez esse seja um indício de que não há nada de errado em dar de mamar até esta idade.
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Para quem receie que amamentar até tarde crie uma dependência excessiva dos bebés em relação às mães, estas asseguram que as suas crianças são perfeitamente autónomas, autoconfiantes e com uma boa auto-estima. «E isso tem que ver com a amamentação e com a proximidade que ela dá», completa Marie-Lizzeth Hourcade, uma engenheira química francesa, mãe de um menino de 14 meses, que entretanto acabou de entrar. Pouco a pouco, as mães começam a chegar. A reunião pode iniciar-se.O tema de hoje é a chegada do bebé a casa e a gestão dessas expectativas. Seis mães estão presentes: Susana Rebelo, 31 anos, engenheira de materiais, mãe de dois - uma menina de quatro, e grávida de 20 semanas, de um rapaz; Sofia Seca, 26 anos, bióloga, mãe de dois - um de três anos e meio e outro de oito meses; Isabel Rute Reinaldo, 37 anos, professora de filosofia, mãe de seis - de 11, 10, 8, 5, 4 anos e cinco meses; Marie Lizzeth Hourcade, 29 anos, engenheira química, mãe de um rapaz com 14 meses; Nicole Cruzinha, 30 anos, professora de Inglês, mãe de uma menina de dois meses; e Cristina, 33 anos, mãe de cinco - de 11, 9, 7, 4 e 2 anos. No fundo, este é um espaço de partilha. Aqui tiram-se dúvidas, trocam-se experiências, convive-se. Ou tão simplesmente, para as mães em licença de parto, vêem-se outras caras que não a do seu bebé...
É o caso de Nicole, uma norte-americana a viver há cinco anos em Portugal. É a sua segunda reunião. Soube da sua existência através de uma amiga - embora a mãe, nos EUA, já lhe tivesse falado na Liga La Leche. As reuniões a meio da semana - que para quem trabalha, podem ser complicadas de assistir - são para ela, ainda em licença de parto, fundamentais. O marido trabalha, a sogra não está com ela, a mãe vive nos EUA, ela fica sozinha com a filha o dia todo. «Não tenho um minuto para mim», confessa. Estes encontros ajudam-na a perceber que não é a única a passar pelos mesmos problemas. Além disso, «quando uma pessoa está sozinha em casa, não fala com ninguém, não tem nenhuma conversa inteligente», afirma.
Susana Rebelo lembra que a sua experiência de amamentar foi muito mais complicada do que alguma vez supôs. Não deixou sequer que, na maternidade, dessem o primeiro biberão à filha. «Achei que era importante.» Pensava que dar de mamar ia ser fácil, que ia ser a coisa mais natural do mundo, que ia ser uma óptima mãe... E afinal, a experiência revelou-se bem mais difícil. «Eu jorrava leite a dois metros de distância, a bebé não mamava mais que três minutos e meio, ninguém me ajudava... As minhas primas não tinham amamentado, a minha avó também não, a minha mãe já não se lembrava...»
Isabel Rute Reinaldo amamentou todos os seus filhos - alguns até aos dois anos e tal, um deles até aos quatro. Garante que, se não soubesse exactamente o que queria fazer - queria amamentar em exclusividade até aos seis meses -, teria passado muito tempo na corda bamba. Não só pelas pessoas - cada qual dita a sua sentença -, mas também pelos médicos e enfermeiras, que empurram facilmente para os suplementos vitamínicos. No fundo, é aquilo que Iolanda Sousa, 35 anos, mãe de dois, outra das mães que a Liga ajudou, resume da seguinte maneira: «Não se pode dizer que haja médicos avessos ao aleitamento materno, mas se o bebé não aumenta 200 gramas por semana, entram logo os suplementos e o biberão... e isso estraga imediatamente o equilíbrio entre a procura e a oferta.»
Na verdade, Teresa Santana Félix, enfermeira especializada em Saúde Materna e Obstétrica e coordenadora da linha SOS Amamentação, explica: «Os movimentos que o bebé faz com a boca quando está em contacto com a mama ou com a tetina do biberão são totalmente diferentes.» Mamar na tetina é muito mais fácil para a criança que, depois, tem dificuldades em habituar-se de novo à mama. «Este é um dos erros que muitos profissionais de saúde (nomeadamente as enfermeiras que dão biberão nas maternidades) cometem», afirma.
Margarida Fernandes chega no fim da reunião. Tem 35 anos e é bióloga. É também voluntária da Linha SOS Amamentação, desde que, recentemente, fez a formação. Foi mãe há 15 meses, de uma menina, que continua a amamentar. Decidiu voluntariar-se porque a sua experiência foi enriquecedora. O que não a impede de reconhecer que existem vários momentos de crise: «No início, nomeadamente, até se regularizar o aleitamento entre a mãe e a criança; e depois, os momentos de ajustamento do bebé, por causa do seu próprio crescimento.»
Margarida teve conhecimento da Liga La Leche ao frequentar o curso de preparação para o parto da psicóloga e fisioterapeuta Graça Mexia, quando ouviu Cristina Leite Pincho falar sobre amamentação. Deu de mamar nos lugares mais variados e garante que nunca sentiu hostilidade por parte de ninguém, mas recorda que a maior parte dos sítios não está preparada para ajudar as mães a amamentar. Lembra que em muitos centros comerciais existem fraldários, mas não há uma cadeira para uma mãe se sentar a dar de mamar.
A bióloga considera que este acto nem sempre é fácil, «porque na nossa sociedade se perdeu o culto de partilhar a maternidade. Antes, a família era alargada: primas, tias, irmãs e avós viviam juntas, e davam de mamar umas em frente às outras». Margarida acredita ainda que, no nosso país, algumas mulheres da classe média alta têm mais dificuldade em reunir as condições para amamentar, «porque há uma grande pressão para voltar à carreira profissional, ou porque o empregador não facilita a vida às mães». «Conheço pelo menos dois casos assim», diz. E lembra: «O 'stress' é o inimigo número um da prolactina, a proteína produzida pelo leite materno.»
Margarida ressalva que «os bebés também mamam por consolo». Mas isso não tem que ser negativo. «Quanto mais dependente for a criança na sua infância, mais probabilidades terá de ser independente em adulto, com uma maior auto-estima e confiança», defende. O pediatra Mário Cordeiro não partilha da mesma opinião. Considera que a autonomia se constrói desde o nascimento - e não só na adolescência. Para ele, independentemente das condicionantes de cada caso, o ideal é amamentar seis meses. Depois disso, «podem criar-se dependências nos dois sentidos e culpabilizações, que são dispensáveis». O médico acredita ainda que algumas mães podem ter tendência para prolongar o processo da amamentação como forma de fazer durar «o efeito bebé».
| Cristina Leite Pincho lidera a Liga La Leche portuguesa, que reúne mensalmente |
Para Mário Cordeiro, o mais importante é que tanto a mãe como a criança se sintam bem e estejam saudáveis e felizes. «Não sou um fundamentalista», assegura. Se amamentar for para a mãe uma provação ou for difícil de conciliar com a sua vida diária, não lhe parece criminoso pôr o aleitamento materno de parte. «Se uma mãe que tem de dar de mamar de três em três horas sente que já não tem vida nem identidade própria, ou tempo para passear, o biberão é uma alternativa perfeitamente aceitável.» Afinal, «amamentar não é uma lei, nem se é má mãe se não se der de mamar.» Além disso, «pode dar-se um biberão com o mesmo carinho com que se amamenta», diz. Quanto à recomendação da OMS, o pediatra acredita que esta visa o mundo inteiro - no qual se incluem os continentes africano e sul-americano, onde o leite materno é de facto o mais seguro para o bebé - e não especificamente o mundo ocidental, no qual Portugal se insere.O médico reconhece que o papel de Ligas e Linhas é importante sobretudo para dar um acompanhamento imediato e prático às mães que têm dúvidas. Considera que há muita falta de informação e faz-lhe muito mais confusão que haja mães que ainda não saibam por exemplo que, com a subida do leite, ao sexto dia, é natural terem febre - não é porque tenham qualquer tipo de infecção. Explica que «o leite fraco é um mito. O leite nos primeiros dias é suposto ser uma aguadilha». Se a mãe tem pouco leite, o mais provável é que seja «stress», e o melhor é mesmo pôr o bebé a mamar mais vezes, para estimular a sua produção. Enquanto a criança mamar, a mãe produz sempre leite.
Mário Cordeiro não tem qualquer dúvida quanto ao facto de o leite materno ser o melhor alimento para o bebé. «Por três razões, fundamentalmente: primeiro, porque tem proteínas humanas, ao contrário do leite artificial, que tem proteínas de vaca - as principais causadoras de alergias. Depois, porque tem matérias vivas, que transmitem imunidade ao bebé. Finalmente, porque o leite materno modifica-se diariamente, à medida das necessidades da criança - adapta-se naturalmente, coisa que o leite artificial não faz. Há ainda um aspecto curioso, de que se fala pouco: o leite materno tem sabor e cheiro diferentes, que variam - e isso é importante porque os bebés estão numa fase da sua vida em que funcionam à base dos cinco sentidos.»
A moda do biberão, que teve o seu grande «boom» nos anos 60, coincidindo com o feminismo - que afirmava querer libertar-se da «escravatura do peito» - só começou a conhecer uma tendência decrescente a partir do fim da década de 80, início de 90. Em 1999, um estudo realizado em seis freguesias do nosso país apurava que 99% das mães declaravam ter intenção de amamentar e que 95% o fazia. Hoje, existe um claro retorno ao seio materno, apesar de, como salienta Teresa Santana Félix, «no nosso país nunca se verem mães VIP a amamentar, mas poderem ver-se a dar biberão». A par da questão social ou «politicamente correcta», existe também a pressão familiar: os pais e os avós preferem muitas vezes o biberão porque assim, eles também podem dar.
Na Liga, ninguém se assume como fundamentalista do aleitamento materno. Ali, acredita-se que «a amamentação é uma arte que requer aprendizagem e, tal como o parto, corre muito melhor com preparação, conhecimento e encorajamento». Além disso, considera-se que cada bebé é único. Como no universo dos adultos, cada criança é um mundo, individual. Cada caso é um caso. Não há um só padrão.